EDUARDO ALEXANDRE BENI
Coronel da Polícia Militar de São Paulo
Piloto e instrutor de helicóptero
Quando se fala em embarque de arma de fogo em aeronave civil uma longa e interminável discussão se inicia. Pilotos, empresas, ANAC, Militares, Policiais, Justiça, etc, todos se manifestam e cada um apresenta um argumento, ou jurídico ou de segurança, em alguns casos, ambos. São entendimentos por vezes concisos, difusos e na maioria contraditórios. Mas o que diz a lei?
Não pretendo dizer quem está certo ou quem está errado, aliás seria pretensioso de minha parte fazer isso, mas posso indicar alguns argumentos jurídicos históricos e atuais que podem ajudar a desenrolar esse “dilema legal” ou esse “dilema de segurança”. Vou tentar demonstrar no artigo a evolução normativa, suas contradições e o fato gerador que limitou o transporte de armamentos e munições em aeronaves.
A construção do Direito Aeronáutico no Brasil foi feita de forma compartimentada (civil e militar), tanto do ponto de vista jurídico, como de atribuição. Sobre material bélico, as normas de direito aeronáutico foram construídas, desde seu início, com foco na Aviação Civil e sob três aspectos: Transporte, Autorização especial e Aeronave (aplicabilidade).
O objetivo da restrição relativa sempre foi a segurança pública (lato sensu), a segurança da aeronave e a segurança das pessoas a bordo.
Quais normas aeronáuticas falavam sobre transporte de material bélico?
Todos sabem que o Direito Aeronáutico no Brasil originou-se do artigo 19 da Lei Nº 4.911 de 1925, onde determinou que o Estado regulamentasse o serviço de aviação, assim, em 22 de julho de 1925 foi publicado o Decreto Nº 16.983. Desde essa época existem restrições sobre o transporte de armamento em aeronaves.
Essa norma foi elaborada após a Primeira Guerra Mundial e, certamente, essa restrição está relacionada à segurança pública e ao risco potencial que poderia causar armas e munições dentro de uma aeronave. Somente um adendo: vimos ao longo dos anos que na aviação civil a pior arma não foi a embarcada, mas sim a própria aeronave. Mas vamos continuar…
Art. 78. Salvo com autorização especial, concedida pelo Ministro da Viação e Obras Publicas, nenhuma aeronave poderá transportar explosivos, armas ou munições de guerra, pombos correios, objectos comprehendidos no monopolio postal ou quaesquer outros que forem posteriormente designados, por motivo de ordem ou segurança publica. (grifo nosso)
Importante esclarecer que desde o início as aeronaves eram classificadas em públicas e privadas, e muito embora esse artigo fale de aeronave de forma genérica, ele está inserido no Capítulo VII – Dos Transportes Aéreos, além do fato de o decreto excluir de sua aplicabilidade as aeronaves públicas (Art. 6º).
Percebe-se que, desde a primeira norma, a aviação foi compartimentada em civil e militar, não tendo aplicabilidade erga omnes, ou seja, possuía aplicação imediata somente para a Aviação Civil. Para a Aviação Militar (Pública) valeria regras próprias, como é até hoje em parte.
Outro detalhe importante é que, à época, a autorização era dada pelo Ministro da Viação e Obras Publicas (Atual Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil), ou seja, ela determinava de forma específica quem possuía a competência para autorizar o transporte. Outra questão relevante é o uso do verbo “transportar”, ou seja, a ideia era a proibição de conduzir de um lugar para o outro material bélico.
Complementarmente, em 06 de janeiro de 1932, foi publicado o Decreto Nº 20.914 que regulou a execução dos serviços aeronáuticos civis. Da mesma forma que o anterior, a aplicabilidade da norma somente alcançava as aeronaves privadas (Art.16). A restrição de transporte de material bélico em aeronave privada foi mantida, mas não delimitou de quem era a responsabilidade para autorizar o transporte:
Art. 50. Salvo autorização especial, é proibido o transporte por via aérea de explosivos, armas e munições de guerra, tóxicos e entorpecentes.
Foi em 08 de junho de 1938, através do Decreto-Lei Nº 483, que foi instituído no Brasil o denominado Código Brasileiro do Ar. Esse código consolidou as duas normas anteriores e criou a estrutura jurídica da Aviação Civil no Brasil. Sobre material bélico manteve-se a regra anterior, porém agora delimitando qual aeronave não poderia efetuar o referido transporte:
Art. 49. Nenhuma aeronave privada poderá transportar, salvo autorização especial, ouvidos os Ministérios da Guerra e da Marinha:
a) explosivos, armas de fogo, munições de guerra e quaisquer meios e petrechos bélicos e bem assim pombos correios;
Passaram-se os anos e em 18 de novembro de 1966, através do Decreto-Lei Nº 32, foi instituído um novo Código Brasileiro do Ar no Brasil. Esse código manteve a classificação de aeronave em pública e privada, porém excluindo de sua aplicabilidade somente as aeronaves públicas militares. Sobre material bélico manteve-se a regra de restrição ao transporte, mediante expedição de autorização especial de órgão competente:
Art 68. Nenhuma aeronave poderá transportar, salvo com autorização especial de órgão competentes explosivos, munições, arma de fogo, material bélico, equipamento destinado a levantamento aerofotogramétrico ou de prospecção ou ainda quaisquer outros objetos ou substâncias consideradas perigosas para a segurança pública ou da aeronave.
Nesse Código, a exclusão de sua aplicabilidade restringiu-se apenas para as aeronaves públicas militares, ou seja, as aeronaves públicas de uso dos Estados e as privadas deveriam seguir as regras gerais estabelecidas. Importante lembrar que as Polícias e os Bombeiros não utilizavam nessa época aeronaves em suas operações. O Estado possuía aeronaves para transporte de dignitários (autoridades) e, desde os primórdios da norma aeronáutica, as aeronaves públicas assemelham-se às aeronaves privadas, quando utilizadas em serviço de natureza comercial, como o transporte de pessoas e coisas (ex: VASP).
Em 1967, através do Decreto-Lei Nº 234, a classificação de aeronave mudou de pública e privada, para militar e civil. A aeronave militar passa a pertencer a um categoria específica, muito embora, em sua essência, ainda seja pública. As aeronaves públicas passam a pertencer à categoria civil ao lado das aeronaves privadas. Isso aconteceu porque o Estado usava aeronaves somente para o transporte de pessoas e coisas. A regra de transporte de material bélico permaneceu inalterada.
Alguns entendem que essa restrição alcança as aeronaves civis públicas das polícias e dos bombeiros. Essa é uma confusão criada pela norma e das pessoas que a interpretam, mas, quando entendemos que essa legislação, desde seus primórdios, foi construída para a aviação civil, para o transporte de pessoas e coisas, para o desporto, formação e não para as atividades essenciais dos Estado, tudo fica mais coerente.
Ao longo de 20 anos, a aviação civil foi passando por mudanças e, em 19 de dezembro de 1986, foi sancionada a Lei Nº 7.565, que instituiu o Código Brasileiro de Aeronáutica, norma ainda em vigor. A classificação de aeronaves manteve-se em militar e civil, excluiu as aeronaves militares de sua aplicabilidade e, sobre material bélico, o artigo 21 manteve a proibição relativa para o transporte em aeronaves civis, condicionando-a a existência de uma autorização especial expedida por órgão competente.
Quais são as normas atuais que falam sobre embarque de arma de fogo e munições?
Em 2005, a ANAC foi criada pela Lei Nº 11.182. O inciso XI do Art. 8º conferiu à ela a competência de expedir regras sobre segurança em área aeroportuária e a bordo de aeronaves civis, porte e transporte de cargas perigosas, inclusive o porte ou transporte de armamento, explosivos, material bélico ou de quaisquer outros produtos, substâncias ou objetos que possam pôr em risco os tripulantes ou passageiros, ou a própria aeronave ou, ainda, que sejam nocivos à saúde.
Para essa finalidade a ANAC expediu o RBAC 175 – Transporte de artigos perigosos em aeronaves civis, o RBAC 107 – Segurança da aviação civil contra atos de interferência ilícita – Operador de aeródromo e o RBAC 108 – Segurança da aviação civil contra atos de interferência ilícita – Operador aéreo, etc.
A preocupação com o transporte de armas e munições está presente na Lei Nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003. Essa lei dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição e sobre o Sistema Nacional de Armas. O Art. 33 prevê a aplicação de multa à empresa de transporte aéreo que deliberadamente, por qualquer meio, faça, promova, facilite ou permita o transporte de arma ou munição sem a devida autorização ou com inobservância das normas de segurança.
O Decreto Nº 5.123 de 1º de Julho de 2004 regulamentou essa lei e conferiu, através do Art. 48, algumas competências ao Ministério da Defesa e ao Ministério da Justiça sobre as regras de embarque de armas e munições.
Assim, como regra geral, compete à Polícia Federal estabelecer regras e expedir autorizações para embarque de armas e munições em aeronave, e não à ANAC. A ela, como vimos, cumpre estabelecer regras de segurança. Se na prática confundirmos essas competências teremos um “prendendo” o outro. Aliás, é o que acontece muito entre piloto e policial. Vejamos as competências:
Art. 48. Compete ao Ministério da Defesa e ao Ministério da Justiça:
I – estabelecer as normas de segurança a serem observadas pelos prestadores de serviços de transporte aéreo de passageiros, para controlar o embarque de passageiros armados e fiscalizar o seu cumprimento;
II – regulamentar as situações excepcionais do interesse da ordem pública, que exijam de policiais federais, civis e militares, integrantes das Forças Armadas e agentes do Departamento de Segurança do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, o Porte de Arma de Fogo a bordo de aeronaves; e
III – estabelecer, nas ações preventivas com vistas à segurança da aviação civil, os procedimentos de restrição e condução de armas por pessoas com a prerrogativa de Porte de Arma de Fogo em áreas restritas aeroportuárias, ressalvada a competência da Polícia Federal, prevista no inciso III do § 1º do art. 144 da Constituição.
Parágrafo único. As áreas restritas aeroportuárias são aquelas destinadas à operação de um aeroporto, cujos acessos são controlados, para os fins de segurança e proteção da aviação civil.
Nesse sentido, reforçando a competência constitucional de polícia aeroportuária à Polícia Federal, o Decreto Nº 7.168, de 05 de Maio de 2010 (Programa Nacional de Segurança da Aviação Civil Contra Atos de Interferência Ilícita) conferiu à Polícia Federal o controle e fiscalização do embarque em aeronaves de armas e munições, claro que em coordenação com a ANAC (Art. 152 a 158 do Decreto).
O decreto, como as normas já vistas, o embarque de passageiro com arma de fogo restringe-se aos servidores governamentais autorizados, levando-se em conta os aspectos relativos à necessidade, à segurança de voo e à segurança da aviação civil.
Segundo a norma, as informações referentes ao embarque de passageiros armados deverão ser transmitidas pela empresa aérea ao comandante da aeronave de forma discreta, limitando-se ao nome do passageiro e número do seu assento, de forma a resguardar o sigilo da existência de arma a bordo e da condição de seu detentor.
Quando lemos essa condição estabelecida pela norma legal, observa-se uma prática bem diferente, onde observamos discussões entre pilotos e policiais e que em alguns casos, resultando em “prisões” de ambos os lados, inquéritos policiais, culminando com processos judiciais.
Não para por ai, a norma determina que a tripulação da aeronave informe, de forma reservada, ao passageiro que embarcar armado, sobre a existência de outros passageiros que se encontrarem nessa mesma condição e a administração aeroportuária deverá disponibilizar local apropriado e equipado para desmuniciamento de arma de fogo.
Por fim, o atual Código Brasileiro de Aeronáutica estabeleceu nos seus Arts. 165 a 173, competências e atribuições ao Comandante de Aeronave. Bom lembrar que muito do que se lê no direito aeronáutico tem origem no direito marítimo. Historicamente, foram dadas diversas prerrogativas ao Comandante e criou-se, ao longo do tempo, uma cultura de que dentro da aeronave é o comandante quem manda, porém não é bem assim.
A norma conferiu ao Comandante competências que vão muito além de sua capacidade laborativa e decisória, como, por exemplo, o que prevê o Art. 166, ou seja, é responsável desde a carga despachada até o fornecimento de alimentação à tripulação.
Claro que quanto a segurança do voo é inquestionável e intransferível sua competência, porém existem, além das regras expedidas pelos órgãos reguladores e normas estabelecidas pela empresa aérea, outras normas, leis e decretos que o Comandante da Aeronave e Policiais precisam conhecer e entender. Uma conflito embarcado pode ensejar excessos e resultados indesejáveis. Ai a arma pode vir a ser um objeto perigoso para a segurança.
O que fazer então?
Paciência, calma, ter conhecimento e informação para saber o que fazer. Ficou claro a importância da leitura dessas normas, tanto pelo policial, como pelo piloto. Importante o estudo disso, pois é tema complexo, pouco debatido, e, por vezes, fere suscetibilidades, ocasionando resultados inconvenientes. Com paciência e reflexão sobre o caso concreto, muitos embates e debates deixariam de acontecer.
Assim, em uma análise inicial, verifica-se que a norma, observando a evolução histórica dela, pretendeu assegurar a segurança de voo ou operacional, mas não PROIBIU o transporte ou o porte de arma em aeronave, como fez com o tabaco e até ultimamente com uma marca de celular. Existe na verdade um conflito de autoridade, a que expede a autorização e a que tem detém a segurança do voo.
O transporte e o porte de arma de fogo e munições É PERMITIDO, desde que exista a AUTORIZAÇÃO do órgão competente (Polícia Federal); a Lei determinou quem pode embarcar armado; a ANAC, empresas aéreas e aeroportos devem possuir regras de SEGURANÇA sobre o tema, etc. Criou-se um sistema limitando o embarque de armas e munições e privilegiando a segurança, mas não o proibiu totalmente.
Então, podemos dizer que existem num primeiro olhar três saídas, uma é deliberar e debater o tema e criar um consenso, outra é proibir totalmente o transporte ou o embarque de armas e munições e a última seria “melhorar” o texto da lei, deixando mais clara a atribuição do comandante da aeronave sobre o tema.
Um tema não abordado
Um tema que não exploramos no artigo, mas que merece TOTAL atenção é discutir se é constitucional (Organização do Estado -Art. 18 a 43 da CF88) uma Agência Reguladora interferir ou “legislar” sobre as operações áreas realizadas por Órgãos de Segurança Pública instituídos pela Constituição Federal (Art. 144 da CF88).
Nesse caso, não estaria a ANAC extrapolando suas atribuições legais relacionadas à regulação econômica e avançando na Organização Político-Administrativa do Estado? Parece óbvio que é inconstitucional, mas no Brasil, a ANAC emite resoluções (instrumentos normativos não primários) sobre como deve ser a operação (Organização) da aviação das Polícias e Bombeiros.
Se você terminou a leitura, reflita sobre o assunto.
Debata, crie consenso.
Bons Voos, com boa gestão!