Por Raquel Freitas e Fernanda Rodrigues, G1 Minas
Minas Gerais – O relógio marcava 12h37 quando a campainha soou, no dia 25 de janeiro, no Batalhão de Operações Aéreas (BOA), na Região da Pampulha, em Belo Horizonte, indicando um novo chamado para o Corpo de Bombeiros. Nove minutos antes, a barragem 1, localizada na Mina Córrego do Feijão, da Vale, em Brumadinho, havia se rompido, liberando um “tsunami de lama”.
Ao toque do alerta, a major Karla Lessa interrompeu o almoço, iniciando sua participação na maior operação em que atuaria em 18 anos de corporação. “O solicitante estava chorando e informou que muitas coisas haviam sido levadas pela lama. Imediatamente, eu me dirigi para a aeronave já para iniciar o acionamento e, de forma concomitante, o restante da equipe (…) já foi pegando material que seria necessário para utilizar, coordenadas geográficas, informações mais precisas sobre o local do suposto rompimento de barragem”, relembra.
A major diz que, às 12h53, já sobrevoava Brumadinho e, ao ver de perto a área solapada pelo “mar de lama”, começava a ter uma dimensão mais exata da tragédia, que deixou mais de 300 vítimas, entre mortos e desaparecidos.
Em um campo de futebol no Córrego Feijão, ao lado de uma igreja que se tornaria uma das bases da operação por cerca de 25 dias, a major desembarcou um médico, um enfermeiro e o copiloto. Novamente, ela levantou voo e seguiu testemunhando a destruição provocada pelo colapso da barragem.
As primeiras sobreviventes que chegaram ao maior pronto-socorro do estado foram transportadas no helicóptero pilotado pela major. Em uma operação extremamente delicada e com a aeronave quase tocando a lama, os militares da aeronave Arcanjo 04 conseguiram salvar a jovem Talita Cristina de Oliveira, de 15 anos, que se afogava naquela vastidão de lama.
A adolescente foi deixada no campinho para que recebesse os primeiros cuidados médicos, e a oficial alçou voo para resgatar Paloma Prates da Cunha, de 22 anos, que havia acabado de ser retirada da lama por um funcionário da Vale.
Neste momento, os militares precisavam tomar uma decisão que significaria lutar pela vida das duas sobreviventes ou tentar salvar outras pessoas. “Eu não tinha autonomia [de voo] para fazer mais resgates e depois levá-las para o hospital. Então, precisava ser decidido. Dependendo do estado de saúde das duas, teria que escolher: ou tentar resgatar mais pessoas ou levá-las de imediato para o Hospital João XXIII”, diz. Por causa da gravidade dos casos, optou-se pela segunda hipótese.
Início da ‘Megaoperação’
O relato da major sobre o que tinha visto em Brumadinho foi fundamental para que a megaoperação começasse a ser desenhada. Ela conta que, no pronto-socorro, o diretor da unidade aguardava a equipe do Arcanjo 04 para decidir se o plano de catástrofe do hospital deveria ou não ser acionado.
“Quando eu cheguei na Pampulha, após entregá-las [Talita e Paloma] aos cuidados do João XXIII, para abastecer, algumas autoridades já me aguardavam para ter informações com relação ao que eu tinha visto e para tomar decisões sobre o futuro da missão, o que seria necessário de mobilização do estado. Então aqui [na Pampulha], já estavam o vice-governador, o comandante-geral dos Bombeiros, o comandante-geral da Polícia Militar, o secretário de Segurança Pública e outras autoridades”, afirma.
Nos segundo e terceiro dia das operações, a major participou da coordenação das atividades aéreas. O campinho ao lado da igreja se transformou em ponto de pouso dos diversos helicópteros que se mobilizavam nas buscas.
Durante as duas semanas em que dedicou os dias de trabalho exclusivamente à operação em Brumadinho, tentar reduzir a dor dos parentes das vítimas era o que motivava a major a cada jornada exaustiva.
“Poder minimizar o sofrimento de tantas pessoas que ainda aguardam respostas, informações com relação aos seus entes queridos. Muitos dos voluntários, por exemplo, perderam alguém e estão lá ajudando os bombeiros, limpando o chão, fornecendo comida. São inúmeras cartinhas que a gente tem recebido, pessoas que nos cumprimentam e dão força para continuar. Então, isso tudo motiva e dá força para continuar a operação até o momento em que a gente conseguir ou encontrar todas as vítimas que ainda estão desaparecidas”, diz.
Casal de bombeiros de MG relata dias de resgate em Brumadinho
Trabalhar em um mar de lama era um cenário que o casal Kênia Oliveira Rosa e Deusdet Moreira de Souza não tinha imaginado ao longo dos anos de carreira no Corpo de Bombeiros. “Acho que ninguém imaginou que fosse acontecer algo tão chocante”. Ela, cabo do 1º pelotão da 2ª Cia dos Bombeiros de Lavras (MG). Ele, sargento do Batalhão de Operações Aéreas da base em Varginha (MG). Juntos há oito anos, dividiram a experiência de trabalhar no resgate das vítimas do rompimento da barragem em Brumadinho (MG).
Viagem a Brumadinho
“No sábado, eu tinha ligado pro Capitão Sílvio pra ser voluntária. Fiquei sabendo pelos meus colegas que quem tinha feito um curso preparatório, que só alguns bombeiros fazem, poderia fazer parte. Logo me prontifiquei”, explicou Kenia.
O marido, sargento Deusdet, que também fez o curso, foi o primeiro a ir. Ele atua como tripulante operacional da Base dos Arcanjos em Varginha. Deusdet partiu com o grupo de Varginha no dia 28 de janeiro, com retorno no dia 4 de fevereiro.
Na mina do Córrego do Feijão, onde ficava a barragem da Vale, Deusdet tinha como função transportar equipes pelo helicóptero, além de equipamentos e cães, ajudar na retirada de corpos, sobrevoar os pontos com autoridades, entre outras atividades.
“Naquela semana, quase toda operação dependia dos helicópteros para acessar os locais. Por isso, chegou a ter quase 20 helicópteros operando nos primeiros 10 dias após o desastre”, explicou o sargento.
Com o retorno de Deusdet, foi a vez da segunda equipe, com a cabo Kenia, que chegou no dia 7 de fevereiro a Brumadinho. Como parte do setor operacional dos bombeiros, ela trabalhou no solo, na chamada zona quente. A função era ajudar na varredura atrás de vestígios, edificações, corpos e segmentos.
“Trabalhei na área alagada e na mais seca. Quando chegou o maquinário na área alagada, a gente foi deslocado. Todas as atividades que os outros fizeram, eu estava fazendo também”.
Primeiras impressões
A força da lama, vista do alto dos helicópteros, impressionou Deusdet assim que viu os primeiros pontos atingidos. “A proporção do estrago, a força da lama retorceu até uma locomotiva e arrancou o pontilhão da linha férrea. Muitas das vítimas nem viram como morreram”, lamenta.
Kenia também relata o choque ao ver a dimensão da tragédia na mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho. “Como o Deusdet foi antes, ele tinha reportado pra mim que estava bem pior do que parecia. Ele ficou assustado. Eu cheguei lá foi a mesma coisa, mesma sensação que ele teve”, comenta.
O forte cheiro na segunda semana de buscas chamou atenção de Kenia. Pela frente, tudo o que viu estava destruído.
“A primeira impressão é que o estrago é muito maior do que a mídia passava pra gente. Já tinha visto pela TV que o estrago tinha sido grande. Mas chegando lá, ver o impacto ao vivo e a cores, é muito maior”.
Trabalho exaustivo
O trabalho muitas vezes ultrapassava as 14 horas diárias. Deusdet começava às 5h30, com reunião entre as equipes. Ao longo do dia, decolagens, buscas e pousos. À noite, era hora da limpeza e do preparo das aeronaves e uniformes para o dia seguinte. O sargento diz que o cansaço físico na linha de frente era grande e que se juntava ao desgaste mental ao longo do dia.
Já Kenia conta que, apesar do cansaço físico, era difícil entender a hora de parar. “Quando a segunda equipe iria atender, após meus sete dias, eu fui voluntária pra continuar, porque eu não tinha noção do meu cansaço. Quando eu cheguei a Lavras, o primeiro dia eu ainda estava com a adrenalina. Só depois eu senti o cansaço”, conta.
Força e contato com a comunidade
Lidar com família das vítimas e com quem viveu de perto a tragédia trazia um peso maior ainda ao trabalho dos bombeiros.
“A atividade lá era pesada, desgastante, mas no final não tem como não se envolver. Tinha alguns trabalhadores da Vale com o maquinário, auxiliando a gente. Eles contavam as histórias deles. Você acaba tendo um envolvimento emocional muito grande”, diz Kenia
A cabo dos bombeiros não chegou a ter contato direto com vítimas. “Tinha dias que ficávamos frustrados por não encontrarmos ninguém. Fomos lá com a missão de trazer conforto aos familiares e amigos das vítimas”.
Em uma troca de papéis, muitas vezes, era a comunidade que dava o conforto aos bombeiros. Kenia, como centenas de militares que trabalharam nas operações de resgate em Brumadinho, recebeu cartas escritas pelas crianças daquela região.
Nos recados, entregues sempre ao final de um dia de trabalho, mensagens simples e desenhos feitos para motivar o trabalho dos bombeiros. “Ficávamos muito comovidos. Cada uma mais linda e tocante que a outra. Ficávamos emotivos e nos dava mais ânimo e garra para o dia seguinte”.
De volta à rotina dos trabalhos no Sul de Minas, a cabo Kenia acredita que ter feito parte da maior operação de resgate da história do país trouxe muitas lições. “Foi um marco na vida de muitas pessoas, não só as que estavam envolvidas diretamente no resgate. Apesar de triste, foi bonito pra ver a solidariedade das pessoas. Bombeiros de outros estados, gente que dava o sangue. Teve uma interação muito boa”, ressalta.
“Na minha chegada lá, no planejamento, duas menininhas lindas vieram, perguntaram se podiam me dar um abraço. Eu guardo esse abraço até hoje”.